Chances

Era seu primeiro dia de trabalho e sua cabeça media esforços para contornar a notável ansiedade. Ônibus cheio, trânsito lento... Coisas que Natalie está acostumada, assim como qualquer pessoa que transite de Salvador para Lauro de Freitas. Esse dia, porém, se tornara diferente. Milhões de expectativas se passam para chegar ao primeiro salário, emprego e outras coisas. Com ela não teria sido diferente.

Descera no ponto certo, como tinha conferido no Google Maps, e seguiu a passos largos e tensos a caminho da Universidade. A princípio, o caminho parecia mais frequentado e urbanizado. Todavia, o que ela encontrou foi um trilho deserto e cercado de plantas. Seu ritmo ainda acompanhava a música tocada em seu fone. Chances, do Strokes. O que não fazer por uma chance, um detalhe, podendo mudar tudo.

Questionamentos e indagações passaram e chegou ao seu destino. Havia um movimento acentuado em torno da Universidade, por conta de um curso oferecido a policiais. Passou no banheiro para dar aquela checkada característica.
Natalie nunca foi de vangloriar tanto sua beleza. E por ser geek, só alguns entenderiam seu estilo, embora outros apreciassem por pura simpatia. Óculos de grau, cabelo curto e arrumado, tons ruivos, uma roupa incomum e um livro que lhe acompanhara pelo caminho. Assim chegava ao prédio e dirigia-se para a biblioteca para seu compromisso.

O corredor estava silencioso e pareceu frio, mas notou a refrigeração das salas e acatou. Chegou à biblioteca e o cenário era semelhante a um filme de terror. Um lugar mal iluminado, uma mesa e cadeiras, um grande espaço vazio e janelas fechadas para garantir o tom sombrio. A tensão parecia ter aumentado, até o silêncio ser rompido.
- Natalie?
Sua expressão imediata foi de susto, logo acalmada ao saber da existência de alguém naquele recinto. E não era um alguém qualquer.
- O-oi...
A geek encantadora se assustara, é claro, entretanto a presença do bibliotecário lhe intimidou. Um homem de voz imponente, cabelos negros e um olhar curioso, até admirador.
- Então você é a estagiária, ãhn...
- É... Sou sim.
- Nervosa?
- Sim... Aliás, não! É que você me assustou sabe? – disse revelando seu primeiro sorriso.
- Pode ficar a vontade. Seja bem-vinda. Meu nome é Carlos e sou o bibliotecário daqui. Serei seu instrutor nesse período. – Estendeu sua mão em busca do cumprimento, enquanto Natalie correspondeu, mesmo com as mãos suadas.
- Prazer, Nat.. Você já sabe meu nome.
- Gostaria de um café?
Encontro, já? Imaginava a recém-chegada.
- Pode ser.
Ajeitou sua franja e sentou na única mesa do lugar. Seu chefe se ausentava. Hora de fazer suas observações mais conclusivas sobre o local.
Eram várias prateleiras e poucas lhe atraiam. Acostumada com a leitura fictícia, não conseguia enxergar-se diante dos livros presentes. Administração, Metodologia, Filosofia, e até um livro “Como ler um livro”. Pensara numa sátira, porém viu que ia mais além. No final do “mini corredor”, encontrou a sessão de seu interesse. Clássicos nacionais e internacionais, desprezados em uma prateleira. A luz se encontrava bem fraca ali. Não sabia se era poeira demais ou se alguém estaria fumando maconha por ali. Rescindiu com a segunda possibilidade e se concentrou em escolher um livro no qual ainda não havia lido.

No meio de poucas possibilidades, encontrou um clássico de Saramago – Ensaio sobre a cegueira. Leu a sinopse e tentou imaginar a situação. Fechou seus olhos e pôs a mente para agir. Podia sentir o fluído do contexto, até sentir um cheiro conhecido.
- Ótimo livro. Recomendo-o.
- Olha só, você me assustando de novo.
- Algum problema?
- Nada. Só é engraçado.
- O que é engraçado?
E ele chegava cada vez mais perto.
- Você... chegar... desse jeito.
A mão de Carlos ia de encontro a Natalie, deixando-a ainda mais apreensiva. Seu braço passou na altura de seus seios, e então ficou sem reação.
- Ficarei mais feliz ainda se você ler este outro livro dele. (Ufa! – Natalie suspirou).
- É... Obrigada! Então, senhor! Como posso ajudá-lo hoje?
- Carlos, por favor. Caso contrário, já não conto com você para os próximos dias. – Sorria em tom irônico.
- Pode deixar, senh... Carlos!
Passadas as instruções, Natalie cuidou de fazê-las em sua totalidade e com precisão. Assim, terminara seu dia de estágio, mesmo com pouco movimento. Despediu-se do seu comandante e fez o caminho de volta refletindo pela sua manhã.

Manhãs, tardes e noites se passaram. Natalie percebeu que estava totalmente atraída por aquele rapaz, com aparência jovem, porém desconfiava de uma idade mais avançada. Desdenhou de si. Qual interesse ele poderia ter por uma menina jovem, estagiária e diferente do padrão? Sentiu-se adolescente de novo e quase disposta a fazer os testes da revista Capricho. Será que ele gosta de mim? Será que ele beija bem? Será...? Passou a rir de si mesma no caminho. Depois de várias buzinadas, foi chamada atenção e percebeu que estava pintando uma carona. Carlos novamente.
- Ei! Voltando pra casa já? Não tá afim de um almoço?
- Não me leve a mal, mas ainda não recebi o dinheiro do estágio. – Os dois riram.
- Entra logo e vamos num lugar especial.
Seguiram conversando pelo caminho, até ela perceber um gosto em comum?
- Franz Ferdinand!
- What? O que tem?
- Simplesmente adoro essa música!
- Tá brincando? Essa é a minha preferida!
Nada parecia importar, nem a fome, nem o horário. Até se dar conta de onde estava.
- Litoral Verde? Onde estamos indo?
- Guarajuba.
- Por que faz isso, cara?
- Isso o que?
- Por que está sendo tão bom comigo?
- Dificilmente faria isso se você não fosse uma boa pessoa.
- Desculpa, eu sei que sou linda e atraente... Mas seus filhos, sua esposa, não se incomodam?
- Não. Até porque não tenho ninguém nesse mundo. Neste momento, só tenho você.
As últimas palavras foram fatais para seu controle e ela não podia perder a chance (Falamos de chances mais cedo, não?).
- Para o carro!
- Por... Por quê?
Ela esperou o veículo zerar até tomar sua atitude definitiva.
- Me beija.
- C-com...
Mais palavras não bastaram e Natalie fez o melhor que sabe: beijar. Desta vez, era hora do Carlos encontrar no olhar dela, algo não semeado ainda. Uma paixão ardente, numa boa fase: iniciante.

Uma entrevista, um estágio, uma universidade bem capenga, um chefe improvável, uma vontade inevitável, uma chance. Ah, as chances. Sabe como elas são. Uma vez pega, não pode mais ser largada. E essa chance, Natalie fez questão de aproveitar. Mesmo por pouco tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário